Por que o Brasil Sem Fome precisa mudar

Sucesso do programa exige mais do que o Bolsa Família e a desoneração de itens da cesta básica. Diante de dietas de “miojo e salsinha”, o país precisa aumentar a oferta de alimentos básicos e nutritivos. A construção de outros modelos agrícolas é urgente

Foto publicada no jornal “O Povo”
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Introdução: a soma das partes não faz, necessariamente, um todo

Governos, de todas as cores, têm a mania de formular grandes programas através do artifício de reunir ações públicas em curso, espalhadas em vários ministérios, sob um “chapéu” novo e uma boa dose de publicidade.

Pelo que pude deduzir lendo as 4 páginas (em letras miudinhas) do decreto do presidente Lula em dezembro de 2023, instituindo a Política Nacional de Abastecimento Alimentar e dispondo sobre o Plano Nacional de Abastecimento Alimentar e as 50 páginas do Plano Brasil Sem Fome (PBSF), estamos diante de um repeteco desta abordagem.

Da elaboração do PBSF participaram 22 ministérios, a Secretaria-Geral da Presidência e a Casa Civil, representados por 127 gestores e técnicos depois de 40 reuniões, inclusive com dezenas de interlocutores da sociedade civil. O PBSF se organiza em três eixos e em cada um deles apresenta vários desafios e as atividades a serem promovidas (financiadas) por múltiplos entes do governo. Em cada um dos eixos e desafios encontramos elementos de análise que buscam justificar as propostas de ação.

Não vou analisar a proposta do PBSF em detalhe, o que seria cansativo e provavelmente inócuo, mas quero apontar para algumas carências cruciais neste planejamento.

Quais as causas da crise alimentar brasileira apontadas no PBSF?

O PBSF não apresentou nenhuma análise de fundo sobre as causas da presente crise agroalimentar nacional. O fato de que as centenas de técnicos e responsáveis governamentais e da sociedade civil implicados neste planejamento têm grandes diferenças políticas e de entendimento do problema pode ter sido o fator inibidor de um exercício de diagnóstico aprofundado.

Poderíamos resumir a análise em uma única frase: o PBSF considera que os governos de Lula e de Dilma estavam resolvendo o problema da fome no Brasil com as políticas de aumentos reais do salário-mínimo e o Bolsa Família. A “prova” é o fato de que a FAO retirou o Brasil do mapa da Fome. A crise atual é causada pelos governos de Temer e de Bolsonaro que deixaram um legado de 33 milhões de famintos (insegurança alimentar grave), além de 90 milhões em situação de insegurança alimentar moderada (Rede PENSAN).

O PBSF não avaliou as variações dos valores reais dos auxílios, quer por correções feitas pelos programas, quer pelas perdas provocadas pela inflação dos alimentos.

Quando criado, o Bolsa Família pagou um valor médio de 73 reais e suas correções chegaram a um valor de quase 200 reais em 2018, mas se tivesse acompanhado a inflação geral teria que pagar 50 reais a mais… Se a correção fosse pela inflação dos alimentos esta perda seria de cerca de 100 reais. O governo Bolsonaro congelou os pagamentos do BF até a criação do “seu” programa, chamado de Auxílio Brasil, em dezembro de 2021. O AB pagou, inicialmente, 400 reais por família, ampliados para 600 em agosto, às vésperas das eleições. No começo da pandemia o Congresso Nacional criou o Auxílio Emergencial, distribuindo 600 reais por mês por família.

Usando como parâmetro a relação dos aportes dos programas com o salário-mínimo, o BF pagou, em média, 42% e o AB, no seu valor mais alto, pago por 4 meses, 50%. No início do BF, em 2004, o auxílio pagava uma cesta básica, mas com o tempo e a inflação dos alimentos foi perdendo poder de compra. Nada disso foi discutido no PBSF, nem feita nenhuma reavaliação dos valores necessários para garantir uma dieta apropriada para as famílias beneficiárias.

Um diagnóstico mais preciso indicaria as causas da situação de insegurança alimentar dos diversos segmentos deste público diferenciado, os 127 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar grave ou moderada. Seria muito importante para pensar o futuro entender por que, por exemplo, encontramos um grande número de domicílios de agricultores familiares (21,8% ou 850 mil) que estão em situação de insegurança alimentar grave. Parece paradoxal que pessoas dedicadas à produção de alimentos sejam famintas, mas tudo tem explicação que necessita de ser apontada.

O jornal O Globo de 20/4/2024 divulgou os resultados de pesquisa do IBGE e as conclusões da Fundação Getúlio Vargas para as variações na distribuição de renda, apontando para uma redução do número de pessoas em extrema pobreza da ordem de 11,6 milhões em relação ao ano de 2021. Mas quem lê a matéria tende a concluir que ela indica uma forte redução no número de famintos, resultado da confusão induzida pela reportagem, que introduz os números encontrados na pesquisa da Rede PENSSAN para o ano de 2021, 33 milhões.

Desde logo, não há convergência nos números da pesquisa da Rede e os dados do IBGE. Por estes últimos, o número de pessoas em extrema pobreza em 2021 (data da pesquisa da Rede) era de 28,7 milhões. Isto se explica por diferenças de objeto das duas pesquisas, o que o artigo confunde. Um estudou indicadores de insegurança alimentar e o outro o nível de renda. Embora as pessoas em situação de extrema pobreza certamente estarão entre os famintos, muitos que não se encontram entre os primeiros podem estar entre os segundos. A melhoria da renda, efeito dos auxílios (Brasil e Bolsa Família) e, neste governo, a recuperação do emprego e a valorização do salário-mínimo não garante a melhoria da situação alimentar. O endividamento de mais da metade das famílias brasileiras, efeito da pandemia, do desemprego e da precarização do trabalho no governo Bolsonaro, estava elevadíssimo no início de 2023 e parte do recurso dos auxílios foi consumida em pagamentos de atrasados. Vai ser preciso esperar uma nova pesquisa da Rede para podermos ter uma ideia mais precisa do tamanho dos vários públicos-alvo do PBSF, os famintos, os subnutridos e os malnutridos.

Quais as metas definidas para o PBSF?

Embora falhando no quesito diagnóstico de causalidade, o preâmbulo do PBSF apresentou, de forma às vezes contraditória ou incoerente, um quadro da situação de insegurança alimentar grave e moderada. Este apanhado está suficientemente detalhado para que o PSBF pudesse ter definido um conjunto de prioridades e metas a serem alcançadas, coisa que o documento não mostrou, a não ser de forma genérica:

– Tirar o Brasil do Mapa da Fome da FAO (aqui há uma meta implícita, de aumentar a ingestão calórica até o mínimo básico, dirigida a 33 milhões de famintos).

– Reduzir a insegurança alimentar e nutricional, em particular a insegurança alimentar grave. (quanto?).

-Reduzir ano a ano as taxas de pobreza da população. (qual a redução total ambicionada?)

Na primeira meta, é preciso ficar claro o que é o Mapa da Fome da FAO. Este Mapa inclui apenas as pessoas que têm uma ingestão calórica diária menor do que a indicada como vital pelos nutricionistas, em média 2.100 calorias. É notório, no entanto, que muitos dos que ingerem este mínimo vital podem ser carentes em outros quesitos, em particular as proteínas. Ou seja, ingerir calorias acima do mínimo vital não significa que tenha sido superada a insegurança alimentar grave.

Talvez por isso a segunda meta tenha sido colocada, visando uma dieta mais adequada e isto fica reforçado pela definição de uma nova cesta básica mais equilibrada. Preocupa-me esta divisão em duas metas distintas, quando existe uma forte tendência no Brasil da adoção de dietas ultracalóricas e pobres em proteínas, sais minerais e vitaminas. Existe uma parcela do público, não quantificada até agora de forma precisa, que padece de insuficiência proteica e de micronutrientes e que sofre, simultaneamente, de obesidade ou excesso de peso por ingestão exagerada de calorias. Ter como meta primeira ampliar a ingestão calórica dos famintos só reforça este grave estado nutricional dos mais pobres.

Pelos próprios dados apresentados, seria possível e muito necessário que se afirmassem as seguintes prioridades:

– Atacar em primeiro lugar a insegurança alimentar grave, visando não apenas a ingestão calórica, mas uma dieta mais balanceada do ponto de vista nutricional.

Não sabemos com segurança quantos são estes mais desvalidos. Segundo o inquérito da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSAN) de 2022, 33 milhões de pessoas passavam fome. Já o relatório da FAO de 2023, usando critérios diferentes, apontou para a existência de 21,1 milhões de pessoas em estado de insegurança alimentar grave (IAGrave). Estes números tão discrepantes, citados no preâmbulo do PBSF, com uma diferença no número de famintos da ordem de 30%, tornam urgente uma análise que permita adotar uma avaliação consistente para balizar as metas do programa.

– Priorizar os famintos rurais, 6 milhões de pessoas,18,2% do público-alvo prioritário total (PENSAN) ou 3,8 milhões, também 18% (FAO).

– Priorizar os famintos das regiões norte e nordeste, 4,8 e 12,1 milhões de pessoas ou 14,5 e 36,7% do total (Rede PENSAN), ou 3,045 e 7,7 milhões (FAO) em particular os rurais (cruzando com os dados do item anterior).

– Priorizar populações particularmente vulneráveis como indígenas, quilombolas, acampados e assentados da reforma agrária, urbanos em situação de rua, buscando colocar números nestes distintos públicos e sua localização, de forma a poder planejar concretamente as atividades e seus custos.

– Priorizar beneficiários do Bolsa Família, sobretudo famílias chefiadas por mulheres e com muitos filhos em zonas rurais e urbanas. Idem.

São muitas as metas que podemos classificar como prioridades de segundo nível e que se dirigem aos famintos de várias categorias de outras grandes regiões (Sudeste, Sul e Centro-oeste), lembrando que nestes casos a predominância de urbanos é muito maior, em números absolutos e em percentual. E um terceiro nível de prioridade seria o da população em situação de segurança alimentar moderada, a exigir uma pesquisa mais detalhada para poder ser corretamente identificada e quantificada.

A questão da renda mínima

Analisando o primeiro dos eixos definidos no PBSF, o “acesso à renda, redução da pobreza e promoção da cidadania” encontramos elementos já bem colocados desde a instituição do Bolsa Família. Desemprego e baixa renda são indicadores que caíram durante os governos populares, começando uma reversão no segundo governo da presidente Dilma para se agravarem nos dois governos seguintes.

É preciso lembrar que a melhoria de emprego e renda ocorrida desde o governo de FHC e ampliada nos governos populares, não teve um efeito significativo na melhoria da dieta dos mais pobres, embora tenha melhorado a ingestão calórica. Isto se explica por dois fatores importantes: o primeiro é que os gastos das famílias não são definidos apenas pelas necessidades da compra de alimentos. Gastos essenciais, como aluguéis, transportes, saúde, educação, energia, vestuário e comunicação, competem com os gastos em alimentos.

Apesar dos progressos na renda dos mais pobres, estes outros gastos empurram as famílias a despender o mínimo possível com a alimentação e isto significa a adoção de dietas mais baratas e que são mais pobres do ponto de vista nutricional. De fato, o Bolsa Família tornou-se um programa de renda mínima e não um programa de alimentação, no sentido mais estrito. E como programa de renda mínima ele distribui valores complementares à renda familiar insuficientes para cobrir o conjunto das necessidades básicas das famílias, levando ao sacrifício da qualidade alimentar.

Centrar o enfrentamento da questão da insegurança alimentar e nutricional na distribuição de recursos financeiros implicaria em aumentar muito os valores deste aporte e, ainda assim, não seria bem-sucedido se não for aumentada a oferta de alimentos adequados em quantidade, qualidade e preços acessíveis.

A questão da oferta de alimentos

Com estas observações, chegamos ao ponto crucial do PBSF, o segundo eixo: “segurança alimentar e nutricional – alimentação saudável da produção ao consumo”.

Em primeiro lugar, é preciso entender a dinâmica do mercado que define os preços da cesta básica, aquela definida em 1937 no governo Vargas ou a nova cesta, definida em 2024 no governo Lula.

O decreto que instituiu a nova cesta não acompanhou o de Vargas na quantificação desejável do consumo de cada produto, o que torna impossível calcular os custos de uma alimentação saudável indicada por ele, assim como qual o aumento da oferta de alimentos que seria necessário para atender a uma demanda expandida.

O governo Lula está propondo a isenção de impostos para uma parte dos itens da cesta, enquanto outros teriam reduções de 40%. Mesmo sem a indicação quantitativa do consumo alimentar e nutricional desejável, é evidente que o custo da nova cesta será maior do que a atual. Em artigo anterior utilizei um estudo do Instituto de Medicina Social da UERJ, que foi mais longe e definiu uma dieta “correta” em qualidade e quantidades de cada produto, chegando (com preços atualizados pela inflação de alimentos) a valores próximos de 1.400 reais mensais para uma família de dois adultos e duas crianças.

Como a nova cesta não vai alterar a base de cálculo do salário-mínimo, haverá um déficit na capacidade de compra de alimento das famílias. Na verdade, este déficit já existe, mesmo usando o custo mais baixo da cesta tradicional. Para comprar a cesta indicada no decreto de 1937 a família teria de comprometer 57% do salário-mínimo, o que é inviável dadas as outras despesas necessárias. Já o custo da cesta básica desejável, calculado pela UERJ, consumiria a totalidade do atual salário mínimo.

Desonerar os produtos da cesta básica é algo que já foi feito no governo de Dilma, sendo aplicado sobre a cesta tradicional. O efeito sobre o consumo alimentar das famílias não foi significativo, sobretudo porque os preços dos alimentos aumentaram mais do que as desonerações.

Tudo isto indica que não basta indicar uma cesta alimentar ideal, mesmo se quantificada, se os valores da renda dos mais pobres não cobrem os custos, alimentares e outros. Pode-se pensar, e parece que é o caso dos técnicos do governo, que os recursos do Bolsa Família cobririam estas diferenças entre a renda auferida e o custo da alimentação. Não foi o caso no modelo do BF nos governos populares entre 2004 e 2016, nem no programa equivalente definido pelo Congresso em 2020, que elevou os valores distribuídos em 300%.

Alguns analistas explicam este processo a partir da dinâmica dos preços dos produtos básicos, quase sempre acima e muitas vezes o dobro da inflação média da economia. E isto nos leva a nos perguntar por que isto acontece.

Existem dois fatores pressionando os preços dos alimentos para cima de forma persistente. Por um lado, houve um processo de capitalização da produção de alimentos básicos como feijão, arroz, trigo e milho. O modelo adotado pelo agronegócio (e pelo “agronegocinho” da agricultura familiar) implica em custos mais altos pelo uso de adubos químicos, sementes melhoradas, agrotóxicos e maquinário (com custos menores com mão de obra). Teoricamente, esta modernização levaria a uma queda nos preços unitários dos produtos, em função de um esperado aumento no rendimento das culturas. Acontece que, depois de um salto inicial nos rendimentos, estes estagnaram e cobraram maior uso de insumos para sua manutenção. E o custo destes insumos não parou de crescer, aqui ou no resto do mundo, sobretudo pelas maiores dificuldades de se conseguir matéria-prima para energia, adubos e agrotóxicos. A instabilidade climática, com secas e inundações cada vez mais frequentes e intensas, também ajudou a derrubar os rendimentos destas culturas alimentares (e de todas as outras, é claro).

Mas o efeito mais importante na redução da oferta de alimentos básicos no Brasil está em outra causa: a diminuição da área cultivada de forma sistemática. Este fator tem como raiz a competição entre os produtos alimentares e as commodities de exportação. Os mercados internacionais de soja, milho, açúcar e carnes (entre outros) são mais atraentes para os produtores do agronegócio do que o mercado interno de produtos alimentares, sobretudo aqueles de consumo da massa de menor poder aquisitivo.

Por outro lado, os produtores familiares mais capitalizados, que até 1985 colocavam a maior parte dos produtos alimentares de base no mercado, deixaram de lado este foco e passaram a se dedicar, como os produtores do agronegócio, ao cultivo de commodities e à criação de gado. Hoje a contribuição da agricultura familiar para a produção de alimentos está, em valor, entorno de 25% enquanto o resto está nas mãos do agronegócio.

Esta mudança se explica pelo impacto das políticas de promoção do desenvolvimento da agricultura familiar adotadas pelos governos de FHC, Lula e Dilma. O crédito facilitado e a assistência técnica, conduziram perto de 500 mil agricultores (12,5% do total) a adotarem o modelo produtivo dito moderno, com o uso intensivo de insumos e máquinas. Muitos (em um cálculo ainda estimativo, perto de 125 mil) quebraram e abandonaram o campo, mas os mais eficientes (ou mais bem dotados em termos de condições de produção) verificaram que era mais seguro e rentável produzir commodities do que alimentos de consumo de massa e muitos trocaram de foco.

E porque será que as commodities são mais atraentes do que arroz, feijão, milho, trigo e mandioca? Por óbvio, o mercado de alimentos está balizado pelo poder de compra da renda auferida pelas famílias consumidoras e essa renda sempre esteve aquém das necessidades, alimentares ou outras, das famílias mais pobres e até das remediadas.

Os preços mais altos dos alimentos de base, pressionados pelos custos de insumos e pelos impactos climáticos, levaram a um processo de mudança continua na dieta dos mais pobres e mesmo dos remediados. O arroz com feijão foi substituído pelo arroz com ovo, depois pela massa (trigo) com salsicha e depois pela bolacha, pão ou miojo (trigo) com salsicha.

É claro que estes são elementos simbólicos e ninguém come apenas estes produtos, mas o cerne da questão é que, sob pressão dos preços dos alimentos e da renda baixa, as famílias foram se adaptando a consumir os produtos de menor preço: os ultraprocessados, apesar de sua menor qualidade nutricional. A população mais pobre (os 60 milhões do programa Bolsa Família) e os remediados (67 milhões) vai adotando uma dieta que se resume a “encher barriga”, implicando na pandemia de desnutrição, subnutrição e obesidade que nos assola e que incide no aumento exponencial de enfermidades como diabetes, doenças cardiovasculares e câncer.

Por outro lado, esta diminuição do consumo dos alimentos de base citados acima inibe a ampliação da produção, criando um círculo vicioso. O volume de produção de feijão e arroz, por exemplo, está estagnado há décadas, enquanto o consumo per capita vai caindo regularmente.

O desafio de aumentar a oferta de alimentos no Brasil é enorme. O PBSF coloca esta necessidade, mas não tenta quantificá-la. Sem metas de produção a proposta fica repetindo as políticas de incentivos do passado, sobretudo a ampliação do crédito, que não alcançaram os resultados esperados.

Qual seria o aumento necessário da produção de alimentos para atender à demanda de uma população corretamente nutrida?

A título de exercício demonstrativo, vamos analisar um dos produtos essenciais desta dieta desejável, pesquisada pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Calculei, em outro artigo, que o déficit da produção de feijões (preto, de cor ou fradinho) seria de 10 milhões de toneladas, sendo que a produção nacional estagnou em 3 milhões há muito tempo, equilibrado com a demanda do mercado. Ou seja, para suprir a demanda ideal (incrementada) dos consumidores nacionais a produção teria que quadruplicar, pelo menos. E quais tipos de produtores poderiam dar esta resposta maciça em termos de aumento de oferta?

A produção de feijões do agronegócio (CONAB, 21/22) chegou a 2.340.000 toneladas e a dos agricultores familiares tradicionais e dos capitalizados chegou a 659.000 toneladas, 78% e 22% respectivamente. Os primeiros colocaram 89% da sua produção no mercado e os segundos 55%, as diferenças se explicando pelo autoconsumo. O abastecimento do mercado nacional de feijão foi de 2,445 mil toneladas, sendo que 14,8% vieram da produção familiar e 85,2% da agricultura patronal.

Isto indica que o esforço do governo para quadruplicar a produção de feijões deveria estar centrada na categoria dos produtores do agronegócio, cerca de 309 mil agricultores. No entanto, apenas 6 mil agricultores, com área de propriedade entre 20 e mais de 500 hectares, respondem por cerca de 60% da produção atual. Cerca de 20 mil agricultores familiares capitalizados, com área de propriedade entre 5 e 100 hectares, seriam um alvo secundário. Cerca de 1,2 milhão de agricultores familiares tradicionais com área de propriedade entre zero e cinco hectares seriam um alvo terciário, se levarmos em conta como critério apenas o potencial de oferta ampliada de feijão necessária para atender a demanda de uma dieta correta para todos os brasileiros.

Mais do que triplicar a produção dos feijões pode ser conseguido de três maneiras:

– Aumentando o rendimento da cultura de feijão.

Os produtores tradicionais de feijão, de tipo familiar e não capitalizado, obtiveram rendimentos de 650 a 850 quilogramas por hectare. Já os produtores modernizados, os grandes e médios empresários do agronegócio chegaram a 1.200 kg/ha, em média. No entanto, os produtores de Goiás e de São Paulo alcançaram rendimentos médios de 2.600 kg/ha e 2.380 kg/ha respectivamente. O rendimento médio nacional para todos os produtores está em 1.090 kg/ha (Censo IBGE de 2022).

O rendimento máximo na produção de feijão em sistemas convencionais no Brasil foi obtido pela Empresa de Pesquisa Agropecuária (EPAGRI) de Santa Catarina, utilizando variedades de alta produtividade e todo o pacote de insumos químicos, chegou a 4.000kg/ha. Se este pacote fosse aplicado por todos os agricultores de feijão o aumento dos rendimentos seria de 530% para os familiares tradicionais e de cerca de 330% para os modernizados do agronegócio.

Experiencias de produção agroecológica de feijão apontam para rendimentos de até 3200kg/ha em sistemas diversificados complexos que incluem outros produtos na mesma área cultivada, o que inviabiliza a mecanização da colheita e limita esta produção a uma pequena escala, mais adequada para a agricultura familiar.

Chegar a generalizar os rendimentos indicados pelas pesquisas da EPAGRI (ou os da agroecologia) não vai ser coisa fácil.

Em primeiro lugar, porque este sistema mais avançado, dentro da lógica do agronegócio, foi formulado para a produção de feijão preto ou de cor nas condições de Santa Catarina e seria preciso desenvolver variedades adaptadas para o resto do país, em particular para a produção de feijão fradinho no Nordeste.

Em segundo lugar, porque a conversão de cerca de 1,2 milhão de produtores familiares tradicionais, localizados sobretudo no Nordeste, para sistemas capitalizados seria uma tarefa hercúlea e de alto risco, dadas as condições ambientais da região. Lembremos ainda que estes são agricultores de muito baixa renda, sem acesso ao crédito e à assistência técnica e com baixa inserção nos mercados. No entanto, convertê-los para a agroecologia em pequena escala é algo factível a partir de experiências já avançadas promovidas pela sociedade civil. Como já foi dito, esta última opção pode ter importante efeito social e retirar milhões de famílias rurais da situação de insegurança alimentar e até do Bolsa Família, mas sem efeitos maiores na oferta de feijão no mercado nacional.

– Aumentar a área cultivada dos atuais produtores.

No que tange a agricultura tradicional, em particular a nordestina, a disponibilidade de área é muito limitada para ser pensar nesta hipótese, já que mais de um milhão deles tem áreas menores do que um hectare. Já os agricultores familiares do agronegocinho dispõe de, em média, de 30% de sua área total para ampliar cultivos, mas provavelmente teriam que abandonar outras culturas e centrar na produção de feijão, o que os tornariam mais vulneráveis a eventos climáticos, ataques de pragas e flutuações de mercado.

A melhor possibilidade de expandir a área cultivada está nos grandes e médios produtores do agronegócio, que dispõe de área para expandir os cultivos e domínio das práticas agronômicas (convencionais) necessárias. Sem garantias de preços, créditos facilitados e mercado assegurado isto não vai ser possível.

– Atrair novos produtores de feijão.

Isto depende, sobretudo, de se criarem condições competitivas para este produto. Isto não vai ser fácil dada a consolidação de cadeias produtivas de exportação (como a da soja) com preços atrativos. Além disso, o risco que um agricultor teria que assumir ao abandonar a soja, por exemplo, para uma cultura mais delicada como a do feijão não deixa de ser um fator inibidor. Mais uma vez e mais enfaticamente, o governo teria que garantir créditos, preços e mercado que tornem competitiva a produção de feijão frente à das culturas de commodities.

O exercício acima, centrado no feijão, teria que ser feito para todos os produtos da nova cesta básica, começando pelos que já estavam incluídos na anterior, como arroz, milho, mandioca e trigo. Em todos eles haveria que se conseguir o aumento significativo do volume produzido anualmente. Será desafiador, em particular, aumentar a produção de hortaliças na quantidade exigida pela demanda aquecida por um programa dirigido à adoção de uma dieta correta.

Educação alimentar

Há outro fator a ser considerado nesta equação. Os hábitos alimentares dos mais pobres vem sendo condicionados há bastante tempo pela baixa renda e os altos preços e seria preciso um esforço enorme de educação alimentar para que seja adotada uma dieta correta do ponto de vista nutricional, mesmo garantida a renda necessária e a disponibilidade de alimentos.

O governo pode garantir a oferta de merenda escolar com uma dieta correta, desde que aumente significativamente os recursos orçamentários deste programa, mas não pode garantir que os aportes do Bolsa Família, mesmo incrementados, sejam utilizados pelas famílias para a adoção da dieta correta. E os mais pobres tem outras limitações, como o custo da energia (preço do botijão de gás) para o preparo das refeições ou o tempo necessário para este fim.

Será fundamental formular um amplo programa de educação alimentar de forma a garantir que a expansão de renda e da oferta dos produtos alimentares adequados resulte em uma mudança da dieta hoje vigente.

Qual o papel da agroecologia em uma política de eliminação da fome e de adoção de uma dieta correta do ponto de vista nutricional?

Já indiquei, em outros artigos, o potencial da agroecologia para responder a várias das limitações do atual sistema agroalimentar. No entanto, a inevitável e necessária transição para uma agricultura de base ecológica não pode ocorrer em prazos curtos.

O PBSF deveria adotar, na medida do possível, incentivos para facilitar a transição agroecológica, mas fixando metas praticáveis nas condições atuais. Isto seria mais viável, a meu ver, em um programa dirigido aos agricultores tradicionais. Seria possível, do ponto de vista do conhecimento agronômico e de assistência técnica, promover a produção diversificada de base agroecológica para microprodutores tradicionais, garantindo a autossubsistência com a adoção de uma dieta correta.

O MDA lançou um programa intitulado “Quintais Produtivos” que pode ser dirigido a uma produção agroecológica. Existem inúmeras experiências deste tipo promovidas pela sociedade civil, com amplo sucesso, que podem servir de modelo para reprodução em escala. Mas o programa está subdimensionado, quer nos valores identificados para cada família (10 mil reais), quer no número de famílias abrangidas (100 mil).

Não é viável propor que os produtores capitalizados de feijão, trigo, arroz, milho ou outros produtos alimentares, já acostumados ao modelo agroquímico e motomecanizado, possam ser convertidos aos sistemas agroecológicos em massa e em prazos curtos. A necessária e urgente expansão da produção de alimentos não vai ser conseguida por este tipo de conversão agroecológica com a necessária rapidez, já que exige alguns anos para ser completada. Mas é possível induzir a adoção de algumas técnicas desta necessária mudança de longo prazo.

Práticas bem conhecidas desenvolvidas por empresas de pesquisa como a Embrapa, as estaduais ou as universidades agrárias, podem ser disseminadas pela assistência técnica e condicionadas por créditos mais facilitados. É o caso, por exemplo, da adoção do Manejo Integrado de Pragas e doenças (MIP), que deve ser combinado com uma política de redução dos subsídios dos agrotóxicos e pela eliminação dos produtos mais perigosos, hoje largamente utilizados. A adoção do MIP, promovida pela FAO nas Filipinas, por exemplo, permitiu a redução do uso de agrotóxicos em 70%. Tudo isso tem a ver com as políticas de crédito, de seguro e de assistência técnica.

Como enfrentar os constantes aumentos de preços de fertilizantes?

O Brasil depende de importações de fertilizantes em quase 80% da demanda atual. Com um programa de expansão de produção de alimentos em larga escala esta demanda vai ficar ainda mais aquecida e os preços vão subir. A escalada dos preços do petróleo (15% apenas neste começo do ano) também vai pressionar o custo da fertilização. A curto prazo, mas muito mais a médio e longo prazos, o nosso déficit na produção de adubos vai ser dramático. É preciso adotar formas de substituir este insumo, já que não dispomos de reservas de fósforo e potássio que cubram mais do que uma pequena fração da demanda.

O governo deveria adotar um programa nacional de compostagem de lixo orgânico e de lodo de esgoto para enfrentar a carência nacional na produção de adubos. Estudos promovidos pela FINEP há muito tempo têm todos os elementos técnicos e de avaliação econômica e agronômica. No entanto, se tal programa for implementado e deixado à mercê do mercado, é mais do que provável que o agronegócio da soja iria competir pela apropriação deste insumo e a produção de alimentos poderia ficar marginalizada, mais uma vez.

O problema da irrigação

Outro programa fundamental a ser aplicado em larga escala é o financiamento de infraestruturas hídricas capazes de captar e estocar a água das chuvas para promover a irrigação. Este programa já existiu nos governos populares anteriores, mas em pequena escala e ainda não foi retomado.

As experiências com este tipo de infraestruturas hídricas produtivas foram promovidas pela sociedade civil no Nordeste, mas seria importante começar a adaptá-las para outras regiões, dada a crescente irregularidade das chuvas em todo o país. O programa anterior, chamado de “Uma Terra e Duas Águas”, pagava a construção de uma cisterna para uso caseiro e de uma infra hídrica para irrigação.

Existem vários modelos de infra hídrica para este fim, mas a mais comum foi desenvolvida pela Embrapa Petrolina e chama-se cisterna calçadão. Ela permite irrigar de meio a dois hectares de cultivos. Isto é suficiente para o programa dos quintais, citado acima, mas para roçados maiores seriam necessários outros modelos, mais caros. Para dar uma dimensão estimada de custos, dotar os produtores nordestinos com menos de dois hectares de terra (cerca de um milhão) de uma cisterna calçadão (uns vinte mil reais) custaria ao programa 20 bilhões. Já o apoio à produção agroecológica diversificada tem outros custos a calcular.

Para concluir, é preciso dar concretude e definir metas viáveis para o programa, detalhando as políticas específicas e garantindo a sua articulação coerente. E, last but not least, seria importantíssimo que o governo negociasse com os diferentes tipos de produtores para engajá-los nesta tarefa hercúlea de promover um novo sistema agroalimentar nutricionalmente correto.

A criação de uma estrutura estatal para tratar de forma integrada do problema da alimentação em todas as suas dimensões seria muito recomendável, superando estas fórmulas de agregar no papel dezenas de departamentos de vários ministérios, sem que tenham a possibilidade real de integrarem seus esforços. Tal estrutura já existiu no passado e podia voltar à vida, tal a importância desta questão. Trata-se do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, criado pelos militares em 1972 e extinto em 1997. Ao contrário dos tempos da ditadura, esta instituição deveria ter plenos poderes para mobilizar o Estado para enfrentar o problema endêmico da fome e da desnutrição.

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